Leaflet text by Tila Likunzi

“O passado não está morto… nem sequer é passado”.¹

Na exposição A Sul. O Sombreiro, a artista Íris Buchholz Chocolate revela a sua inquietude com o silêncio com que são tratados os temas que nunca são falados. Reflectindo sobre essa ques-
tão, a artista rebusca num antepassado seu, na história do seu país e de Angola e na universali-
dade da violência e repressão, o outro, o mesmo.

Inspirada no romance homónimo de Pepetela, captura a hipocrisia e barbaridade dos primór-
dios da colonização de Angola e convida-nos a revisitar um passado em que os horrores do extermínio dos povos nativos da América Latina se entrelaçam com a desumanidade do tráfico transatlântico de escravos, numa época em que a Europa celebrava um Iluminismo sustentado pela instituição da inferioridade racial de
outros povos.

O que o mundo esquece? E o que lembra?
Somos as vítimas ou somos os culpados? Haverá certezas na vida?

Numa exposição composta por várias instala-
ções, somos imediatamente imersos em ‘Alguns nunca viram o mar’, uma instalação que recorda a diáspora, a quebra e dispersão de laços familiares e culturais. Avançamos para uma série de peças feitas em metal, cabelo artificial trançado, seda e penas de pavão. Evocam as
três instituições do poder colonial: o secular, o eclesiástico e o militar. A orientação das peças coloca-as “em conversa” umas com as outras, reflectindo a dinâmica geográfica da época.
Do horror embelezado por tranças e penas, do manto imperial inspirado num paisagismo barroco assente no esclavagismo. Os olhos das penas de pavão são testemunhos mudos. As perucas desmascaram a impostura. A mitra e capa do Bispo aludem à persuasão da missão civilizacional cristã conivente. As luvas e a armadura atestam a brutalidade da coerção.
Os vídeos ‘Bakamas’ sobrepostos às peças vibram em afirmação da herança ancestral pré-colonial. Os territórios colonizados não eram “espaços vazios”.

A instalação de som multi-canal em linha ‘pele de tatu’, reproduzindo som composto por cantos de pássaros imitados por vozes humanas e sons da floresta tropical, da autoria de Victor Gama, quebra o silêncio implícito que reveste as obras, proporcionando ao visitante um envolvimento literal ou metafórico com as figuras e objectos expostos, como se se tratasse de uma membrana que os envolve, oferecendo-lhes outra possível camada de significados e interpretações.

Como nos distanciarmos do passado quando carregamos o estigma de sermos os descen-
dentes das vítimas e dos opressores?

As peças, suspensas, sem corpo, encarnam
os traumas da migração forçada, humilhação cultural e sobrevivência dos povos colonizados. Traumas que, passados de geração para geração, são revividos, até aos dias de hoje, em guerras civis, conflitos, genocídios e desigualdades norte e sul. A passividade emudece-nos e distancia-
nos uns dos outros, tornando-nos eixos que giram em torno de si próprios, alheios a uma realidade idêntica em que todos participamos,
a pele do invisível.

Como se conversa sobre temas que nunca são falados?

Impelida pela necessidade de interagir, a artista propõe a catarse através do diálogo com a duali-
dade intrínseca de cada peça. Criação e destrui-
ção. Amor e ódio. Paz e conflito. Contrapõe a estas dicotomias o resgate do nosso corpo, que regista as nossas experiências e nos relembra quem somos. A instalação das séries ‘Fio das Missangas’ (em cera de abelha e cabelo artificial) encarna a dor e as marcas deixadas em cada geração. ‘Momentos de Aqui’ (em tintada-china) reproduz o acto de pentear, afrontando a artifi-
cialidade da peruca barroca à criatividade das tranças.

“O passado está presente no nosso presente”.²

Abandonando a dialéctica moderna com que se trata estes temas, a artista lança-se do analítico, baseado na utilidade, para o intuitivo, funda-
mentado na participação, canalizando o uni-
versal para o particular, pondo em causa não ‘quem somos’, mas ‘porque somos o que somos’. Exterioriza o passado (colonial) interiorizado no presente (pós-colonial) que se externaliza para um potencial futuro (descolonial). Concorre com as reflexões de Walter Mignolo que discursa sobre “… processos globais para a descoloniza-
ção da estética e libertação da estese”³. Abraça as ponderações de Lewis Gordon que afirma, “não temos outra opção senão construir as opções sobre as quais depende o futuro da
nossa espécie”⁴.

Avista-se um futuro, ao qual só poderemos chegar enfrentando os dilemas do presente, assumidos pela performance de Irina Vascon-
celos (‘O bobo da corte’), em que, inventando
um diálogo com as figuras suspensas, o pres-
ente confronta o passado numa tentativa de reconciliação.

“Para entendermos o futuro, há que conhecer
o passado, porque a não ser que só haja roturas profundas, somos amanhã o que somos hoje e fomos ontem. Por isso, lembrar-nos do passado não é apenas conhecer o que já foi, mas também pensar o futuro”.⁵

Numa era em que África ‘se reencontra’, torna-se cada vez mais urgente buscarmos alterna-
tivas ao que ‘é’ e ao que ‘já foi’. Este processo de autoconhecimento já não é a “procura da alma africana imortalizada nas máscaras”, descar-
tada por Isaa Samb no Festival Senghor de 1966. É o legado por elas deixado em contínua meta-
morfose. Questionando os nossos sonhos e desejos, a lenda contada pelo desenho Sona dos povos Côkwe (manto imperial) adverte-nos sobre a finitude da vida humana.

Em contínua experimentação, a exposição não termina na universalidade e individualidade
da experiência humana. Visualiza o futuro,
viaja em possibilidades, inventa outros lugares, outras situações. Converge a necessidade de imaginarmos conjuntamente um futuro em
que as diferenças coexistam.

O programa educativo da exposição ‘A Pele
do Invisível’ realizará varios workshops sobre os temas. Incluirá também a disponibilização de material educativo sobre a exposição a media-
dores e professores para a sua posterior discussão noutras arenas.

1 Requiem for a Nun, William Faulkner
2 The Pain of the Future Generations
3 Em dissertação sobre o evento Black Europe Body Politics 2012
4 Fanon and Development. A Philosophical Look, 2011, Lewis Gordon
5 Alexandra Barahona de Brito

“The past is never dead. It’s not even past.”¹

The exhibition A Sul. O Sombreiro² reveals
Iris Buchholz Chocolate’s unease with the silent treatment of themes that are never spoken about. Troubled by this collective reticence, she seeks in the life of her late grandfather, in the history of her country (Germany) and in Angola, and in the universality of violence and repres-
sion, the other, the self.

Inspired by the homonymous novel by Pepetela, she captures the hypocrisy and barbarity of the early beginnings of colonization in Angola and invites us to revisit a past where the horrors of the genocide of peoples native to South America are parallel to the inhumanity of the transatlan-
tic slave trade at a time when Europe celebrated Illuminism sustained by instituting the racial inferiority of other peoples.

What does the world forget? What does it remember? Are we the victims or the perpetrators? Is anything certain in life?

In an exhibition comprised by several instal-
lations, we are immediately immersed in ‘Certaines n’avaient jamais vu la mer’³, a video projection of water reflexes that recalls the diaspora, the severance of family, community and cultural bonds. We advance towards a series of pieces made of gleaming metal, braided artificial hair, green silk and peacock feathers. They evoke the three institutions of colonial power: secular, ecclesiastic and military. The pieces are arranged as if in “a sequential dia-
logue” with one another, reflecting the geopol-
itical dynamics of the time. Of the horror beautified by braids and feathers, of the ‘manto imperial (imperial mantle)’ inspired in baroque landscaping supported by slavery, the eyes of the peacock feathers stand out as silent wit-
nesses. ‘Perucas (wigs)’ betray the fraud. ‘Mitra e capa do Bispo (Bishop’s miter and cape)’ allude to the soft forces of the conniving Chris-
tian civilizational mission. ‘Luvas, armadura e capacete (gauntlets, armor and helmet)’ attest to the brutality of the hard forces. The life-sized ‘Bakamas’ screen projections flanking the pieces, whirl dreamily in affirmation of ances-
tral pre-colonial heritage. The colonized territories were not “empty spaces”.

The multi-channel audio installation ‘pele de tatu (cuirass)’, reproducing bird calls imitated by human voices and sounds of the tropical forest, by composer and designer of contempo-
rary musical instruments Victor Gama, breaks the pieces’ implicit silence, giving us a virtual or metaphorical involvement with the figures and objects, enveloping us like a skin, giving us another potential layer of meanings and interpretations.

How do we distance ourselves from the past when we carry the stigma of being the descendants of the victims and oppressors?

The pieces, suspended, disembodied, incar-
nate the traumas of forced migration, cultural humiliation and survival of the colonized peoples. Traumas that, passed on from genera-
tion to generation, are relived to this day in civil wars, conflicts, genocides and north-south inequality. Our inertia numbs and distances us from one another, turning us into beings pivoting around ourselves, disconnected from an identical reality that we all share, that gets under our skin.

How do we talk about themes that are never spoken about?

Propelled by the need to interact, the artist proposes catharsis through dialogue with the intrinsic duality of each artwork. Creation and destruction. Love and hate. Peace and conflict. However, she chooses to answer these dichoto-
mies by rescuing our sense of our body, which registers our experiences and reminds us
who we are. The serial installations ‘O Fio das Missangas (String of Beads)’ (in beeswax and artificial hair) embodies the pain and marks
left on each generation; ‘Momentos de Aqui (Hereon Moments)’ (ink on paper) reproduces the act of combing, placing the artificiality
of the wig vis-à-vis with the creativity of the braids.

“The past is present in our present.”⁴

Avoiding the dialectics with which these subjects are usually treated, the artist escapes from the analytical, based on the utility of
the artworks, to the intuitive, grounded on the participation of the viewers, channeling the universal into the individual, questioning not “who we are”, but “why we are what we are”. She exteriorizes the colonial past interiorized
in the post-colonial present and externalizes it
to a decolonial future. She concurs with Walter Mignolo’s observations on the “(…) global pro-
cesses to decolonize aesthetics and to liberate aiesthesis”⁵. She embraces the reflections of Lewis Gordon who states “(…) we have no other option but to build the options on which the future of our species rest.”⁶

There is a future, which we can only reach by facing the dilemmas of the present, assumed by the performance of rock, jazz and soul singer Irina Vasconcelos (‘le fou du roi’). By inventing
a dialogue with the suspended figures, the present confronts the past in an attempt of reconciliation.

“To understand the future, we have to know
the past because unless there are deep ruptures, we are tomorrow what we are today and were yesterday. Thus, remembering the past is not only knowing what once was, it is also thinking what is to come.”⁷

At a time that Africa regains itself, it becomes increasingly urgent to seek alternatives to ‘what is’ and ‘what was’. This process of self-knowl-
edge is no longer the “search for the African soul immortalized in masks” discarded by Isaa Samb at the 1966 Senghor Festival. It is their legacy in continuous metamorphosis.

Questioning our hopes and dreams, the legend told by the Sona drawing of the Cokwe people (on the imperial mantle) reminds us of the mortality of man.

In continuous experimentation, the exhibition does not stop at the universality and individ-
uality of human experience. It visualizes the future, travels in possibilities, invents other places, other situations. It converges the need
to imagine a future where differences coexist.

The exhibition is supported by an educational program, A Pele do Invisível (Under our Skin), which will hold several workshops on these themes. It also includes the distribution of re-
lated educational material for cultural media-
tors and school teachers for further discussions in other venues. It endeavors to create the grounds for mutual understanding.