Okufeti(ka)
O desafio de reescrever a história [ The challenge of rewriting history ]
Interview by Ludmila Böse
A exposição “Okufeti(ka)”, da artista plástica
Iris Buchholz Chocolate, reimagina o mito e o sítio arqueológico do Féti situado no centro-sul de Angola, considerado um dos maiores da África Austral. Em entrevista, a artista fala sobre o recontar de uma estória através da arte, a redescoberta de uma antiga sociedade afri-
cana e o despertar de uma história adormecida.
LB: “Okufeti(ka)” é a sua mais recente exposição individual, aberta até 10 de Agosto. Depois de
“A Sul. O Sombreiro” (2016), que reflectia sobre o silêncio em torno dos traumas transgeracio-
nais causados pela colonização, pelo racismo e
o genocídio, o que nos traz a nova exposição?
IBC: “Okufeti(ka)” é uma reflexão sobre a humanidade, sobre como as sociedades antigas se congregaram e desenvolveram. A exposição foi inspirada pelo sítio arqueológico do Féti, no planalto central de Angola, mas, na verdade,
lida com questões mais profundas, ligadas ao tratamento da história. Em particular, da his-
toriografia das antigas sociedades africanas,
da necessidade de repensarmos e reescrever-
mos a história.
LB: Porque decidiu abordar um tema tão amplo através da arte?
IBC: Como alemã a viver em Angola, sempre
tive interesse em investigar sobre a presença alemã no país. Ao terminar “A Sul. O Sombrei-
ro”, comecei a pesquisar o papel dos explora-
dores alemães em Angola, e foi aí que descobri
o trabalho da etnóloga alemã Beatrix Heintze.
A sua investigação centra-se na história ‘pré-colonial’ da ‘África Central Ocidental’ e especial-
mente, Angola. “Okufeti(ka)” foi inicialmente inspirada por um dos seus livros, ainda não traduzido para o português, sobre as viagens no centro-sul de Angola do etnólogo alemão Alfred Schachtzabel em 1913–1914. Um paragrafo curto sobre o sítio arqueológico do Féti – seguido por uma nota de rodapé de uma página inteira – captivou a minha curiosidade até ao ponto em que a minha investigação virou-se para este sítio específico.
LB: E daí surgiu o título da exposição? Porquê “Okufeti(ka)”?
IBC: Durante muito tempo, o título foi simples-
mente “Feti”, o nome do sítio arqueológico. Quando o projecto atingiu uma certa maturi-
dade, decidi chamá-lo “Okufeti” porque julgava que significava, em umbundo, ‘começar’. Até consultar um dicionário de umbundo-portu-
guês, onde descobri que o verbo era ‘okufetika’. Quando tens uma ideia no coração é difícil largar, mas não queria cometer um erro cientí-
fico. Em conversas com a curadora, chegamos a esse compromisso: “Okufeti(ka)”. A escolha do título diz muito sobre como não é possível ter-
mos certezas sobre o passado. Isso também se aplica às nossas vidas. Por exemplo, durante a minha pesquisa, um relato afirmava que o sítio arqueológico do Féti havia sido inundado pela construção de uma barragem em meados do
séc. 20. Contudo, não encontrei outro registo que o corroborasse. Então, esses parênteses em “Okufeti(ka)” reflectem sobre essas incertezas sobre o passado.
LB: Sobre as incertezas… A exposição remagina uma narrativa africana cuja descoberta baseia-se em fontes documentais escritas por pesqui-
sadores europeus. “Okufeti(ka)” é uma narrativa africana ou uma narrativa de África contada pela sua perspectiva individual e artística?
IBC: Ambas. É uma narrativa africana registada na oralidade Ovimbundo, posteriormente docu-
mentada por um missionário francês, um explo-
rador alemão, um garimpeiro português, uma etnóloga americana, um arqueólogo angolano,
e mencionada pelo escritor angolano Henrique Abranches na obra “A Konkhava de Feti”, e por fim, pela etnóloga alemã. Isso diz muito sobre quantas vezes a narrativa já foi escrita e rees-
crita, nas suas várias versões. As tradições orais em Angola, e pelo continente afora, vão sendo parcialmente registadas, deixando ainda muito de parte. Quando se investiga o passado, esses registos, independentemente da sua natureza
e da época em que foram escritos, continuam
a ser fontes de informação escrita. Algumas dessas fontes têm vindo a ser editadas no senti-
do de reflectir o que poderá realmente ter sido.
Por outro lado, escolhi ‘narrar essa história’ porque vivo cá. Para mim, “Okufeti(ka)” é uma experiência pessoal. As obras são a evidência dos meus sentimentos, dos meus pensamentos. É a minha abordagem individual de um local específico. Ao mesmo tempo, “Féti” é uma histó-
ria universal, algo vivenciado por toda a huma-
nidade; os mitos de criação, o nascimento de reinados, coisas inexplicadas encontradas em sítios arqueológicos.... Sempre que se explora
o passado nos deparamos com mistérios, com o desconhecido. As obras são uma reinterpretação e reimaginação desses espaços e narrativas,
elas dão ao público a possibilidade de sentir
uma parte dessa história possível.
LB: Em que medida “Okufeti(ka)” reescreve os espaços e narrativas africanas do passado?
IBC: Esses espaços e narrativas sempre exis-
tiram. Mais além, e aqui cito a artista Grada Kilomba, “na arte também produzimos conheci-
mento, ao criar trabalhos que gerem perguntas que não estavam lá antes (…)”. Poucos sabem sobre o sítio. Fico com a impressão que tirei uma história do silêncio. O que falta, provavelmente, é contextualizar para os dias de hoje. Existem vários registos sobre a história dos antigos rei-
nos e povos do planalto central e doutras regiões do país. No fundo, o reescrever é redescobrir. Ainda há muito por ser descoberto pelos jovens pesquisadores angolanos. É uma questão de quem escreve a história. Só quando pergun-
tamos, obtemos novos conhecimentos.
LB: Numa das obras, uma gravação narra o mito em Umbundu. Qual é a sua visão sobre a oralidade?
IBC: São registos e arquivos de práticas do passado e do presente. É crucial que não sejam esquecidos, e que sejam transmitidos às próxi-
mas gerações. A tecnologia actual, permite que as tradições orais sejam gravadas. Porque não gravar as histórias narradas em línguas nacio-
nais? A beleza é que existe uma variedade de línguas. Importa partilhar a oralidade, a multi-
vocalidade dos vários povos de Angola. As tra-
duções para o português, a língua oficial, já são uma ponte de comunicação entre essas várias identidades.
LB: A história de África é frequentemente dividida entre um período ‘pré-colonial’ e um período ‘pós-colonial’ quando, na realidade,
a maioria dos países africanos foram coloni-
zados por não mais do que 100 anos. Como “Okufeti(ka)” trata a quebra da continuidade das narrativas africanas – a colonização? Poderá a exposição em si ver vista como uma forma de continuidade?
IBC: Até 100 anos de colonização tiveram um impacto tremendo sobre as sociedades africa-
nas. Creio que, em Angola, as políticas coloniais como o luso-tropicalismo e a assimilação nega-
ram e oprimiram as histórias e identidades
dos povos do país. O colonialismo terminou há quase duas gerações. Muitos, ainda em vida, testemunharam a realidade colonial, e vejo que a sociedade continua em busca das suas identi-
dades e raízes. É um processo lento e contínuo,
e espero que esta exposição estimule o interesse em conhecer melhor sobre as antigas socieda-
des africanas, antes da colonização europeia. Feti é somente um exemplo. Na região austral, por exemplo, Zimbabué é conhecido pelas suas ruínas de pedra...
O programa educativo “Okuoya”, que acom-
panha a exposição, abordando temas ligados à arqueologia, astronomia e culturas materiais africanas, é uma forma de partilhar o que aprendi durante a minha pesquisa.
Quando essas histórias são conhecidas e
valorizadas, valorizamos também algo muito fantástico e importante para a história do país: quem fomos no passado. Devíamos saber sobre
a existência desses sítios da mesma forma
que sabemos sobre a existência das Quedas de Kalandula. Féti é um dos maiores sítios arqueo-
lógicos da África Central e Austral. Importa
que essa história adormecida seja acordada.
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A exposição Okufeti(ka) da artista plástica Iris Buchholz Chocolate, reimagina o sítio arqueo-
lógico do Féti, um dos maiores da África Austral, situado no centro-sul de Angola. A exposição está patente até 10 de Agosto de 2019, de terça a sábado, das 10:00 às 19:00, na galeria Jahmek Contemporary Art, Rua dos Coqueiros Nº 201 (Fábrica da Mission), Coqueiros, Luanda.
Publicado: Cultura – Jornal Angolano de Artes
e Letras, Nº 186, 23 de Julho de 2019
The exhibition “Okufeti(ka)” by visual artist
Iris Buchholz Chocolate re-imagines the Feti myth and archaeological site which is located in the central highlands of Angola. It is considered one of the largest in Central and Southern Afri-
ca. In an interview, the artist talks about retell-
ing history through art, the rediscovery of an ancient African society and the awakening of dormant history.
LB: "Okufeti(ka)" is your latest solo show, open until 10 August. After "A Sul. O Sombreiro" (2016), which reflected on the silence surround-
ing transgenerational traumas caused by colo-
nization, racism and genocide, what brings us the new exhibition?
IBC: "Okufeti(ka)" is a reflection on humanity, on how ancient societies came together and flourished. The exhibition was inspired by the Feti archaeological site, in the central plateau
of Angola, but actually deals with deeper issues linked to the treatment of history. In particular, the historiography of ancient African societies, the need to rethink and rewrite that history.
LB: Why did you decide to tackle such a broad topic through art?
IBC: As a German living in Angola, I have always had an interest in investigating German pres-
ence in the country. When I finalized "A Sul. O Sombreiro," I began researching the role of the German explorers in Angola, and this was how
I discovered the work of the German ethnologist Beatrix Heintze. Her research focuses on the 'pre-colonial' history of 'West Central Africa' and especially, Angola. "Okufeti(ka)" was initial-
ly inspired by one of her books, not yet trans-
lated into Portuguese, about the travels of Ger-
man ethnologist Alfred Schachtzabel in south-central Angola, in 1913–1914. A short paragraph about the Feti archaeological site – followed by
a full-page footnote – captured my curiosity to the point where my research turned to this specific site.
LB: And from there came the title of the exhibition? Why "Okufeti(ka)"?
IBC: For a long time, the title was simply "Feti", the name of the archaeological site. When the project reached a certain maturity, I decided to call it "Okufeti" because I thought it meant, in Umbundu, to 'start'. Until I looked up an Um-
bundu-Portuguese dictionary, where I discov-
ered that the verb ‘to start’ is 'okufetika'. When you have an idea in your heart, it's hard to let it go, but I did not want to make a linguistic mis-
take. In conversations with the curator, we agreed on this compromise: "Okufeti(ka)". The choice of the title tells a lot about how it is not possible to have certainties about the past. This also applies to our lives. For example, during
my research, one report stated that the archae-
ological site of Féti had been flooded by the con-
struction of a dam in the middle of the 20th century. However, I did not find another regis-
ter to support it. So, these parentheses in "Okufeti(ka)" reflect on these uncertainties about the past.
LB: About the uncertainties ... The exhibition reimagines an African narrative whose discov-
ery is based on documentary sources written
by European researchers. Is "Okufeti(ka)" an African narrative or a narrative of Africa told from an individual and artistic perspective?
IBC: Both. It is an African narrative registered
in Ovimbundu orality, later documented by a French missionary, a German explorer, a Portu-
guese prospector, an American ethnologist, an Angolan archaeologist, and mentioned by the Angolan writer Henrique Abranches in the work "A Konkhava de Feti" and finally, by the Ger-
man ethnologist, as far as I know. This tells a lot about how often the narrative has already been written and rewritten in its various versions. The oral traditions in Angola, and throughout the continent, are being partially recorded, leaving much of it out of reach. When investi-
gating the past, these records, regardless of their nature and the time of writing, remain sources of written information. Some of these sources have been edited to reflect what might actually have been.
On the other hand, I chose to 'tell this story' because I live here. For me, "Okufeti(ka)" is a personal experience. The works are the evidence of my feelings, my thoughts. It's my individual approach to a specific location. At the same time, "Feti" is a universal history, something experienced by the entire humanity; creation myths, birth of kingdoms, unexplained things found in archaeological sites .... Whenever we explore the past, we are faced with mysteries, with the unknown. The works are a reinter-
pretation and reimagining of these spaces and narratives, they give the public the possibility
of feeling a part of this possible history.
LB: To what extent does "Okufeti(ka)" rewrite African spaces and narratives of the past?
IBC: These spaces and narratives have always existed. Moreover, and here I quote the artist Grada Kilomba, "in art we also produce knowl-
edge, by creating works that generate questions that were not there before (...)". Few know about the site. I got the impression that I pulled a story out of silence. What is missing is probably con-
textualizing it for today. There are several records on the history of the ancient kingdoms and peoples of the central highlands and other regions of the country. In the end, rewriting is rediscovering. There is much to be discovered by young Angolan researchers. It's a matter of who writes history. Only when we ask, do we get
new knowledge.
LB: In one of the works, a recording narrates
the myth in Umbundu. What is your view on orality?
IBC: They are records and archives of past and present practices. It is crucial that they are not forgotten, and that they are passed on to the next generations. Today's technology allows the recording of orality. Why not record the stories narrated in national languages? The beauty is that there is a variety of languages. It is impor-
tant to share the orality, the multivocality of the various peoples of Angola. The translations into Portuguese, the official language, are already
a bridge between these various identities.
LB: Africa's history is often divided between a 'pre-colonial' period and a 'post-colonial' period when, in reality, most African countries were colonized for no more than 100 years. How does "Okufeti(ka)" treat the break of the continuity
of African narratives – colonization?
IBC: Even 100 years of colonization have had
a tremendous impact on African societies.
I believe that colonial policies in Angola, like Lusotropicalism and assimilation, denied and oppressed the histories and identities of the country’s peoples. Colonialism ended almost two generations ago. Many, alive today, have witnessed the colonial reality, and I see that society continues to seek its identities and roots. It is a slow and continuous process and I hope that this exhibition will stimulate interest in getting to know more about the ancient African societies before European colonization. Feti is just one example. In Southern Africa, for exam-
ple, Zimbabwe is known for its ruins of ancient stone architecture...
The educational program "Okuoya", which accompanies the exhibition, addressing themes related to African archeology, astronomy and material cultures, is a way of sharing what I learned during my research.
When these stories are known and valued, we also value something very fantastic and impor-
tant for the history of the country: who we were in the past. We should know about the existence of these sites in the same way we know about the existence of Angolan tourist attractions like Kalandula Falls. Feti is one of the largest archae-
ological sites in Central and Southern Africa.
It is dormant history that must be awakened.
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Okufeti(ka) by artist Iris Buchholz Chocolate reimagines the Feti archaeological site, one of the largest in Southern Africa, located in the central highlands of Angola. The exhibition is open until 10 August 2019, from Tuesday to Saturday, from 10:00 AM to 7:00 PM, at Jahmek Contemporary Art Gallery, Rua dos Coqueiros No. 201 (Mission Factory), Coqueiros, Luanda.
Published: Cultura – Jornal Angolano de Artes
e Letras, Nº 186, July 23, 2019