Iris Chocolate recria “A Sul. O Sombreiro”
O imperialismo, a escravatura e o racismo como parte do homem na sua totalidade
Entrevista por Matadi Makola
A exposição "A Sul. O Sombreiro" (título
do romance de Pepetela), da artista alemã Iris Chocolate, exposta no Memorial Dr. António Agostinho Neto, entre 13 de Outubro a 27 de Novembro, consuma o casamento entre a lite-
ratura e as artes plásticas, resultando no levantamento de questões que ambas as artes impõem. A exposição, quanto à temática, seguiu o fio de pensamento do livro, pintando-o e criando adornos que permitissem outras possi-
bilidades de reavaliar a mesma questão: o colonialismo e suas consequências. Além da instalação, a artista agregou um programa educativo que denominou “A Pele do Invisível”, com ajuda da iniciativa privada “Vamos Ler!”, que inclui a realização de palestras focadas
na temática da exposição, feitas com ajudas provindas do Banco Caixa Totta e a Internet Technologies Angola, Goethe-Institut Angola
e ENSA.
Jornal Cultura: Que relação imagética se
pode definir entre a exposição e o romance
“A Sul. O Sombreiro” de Pepetela?
IBC: O romance leva-nos à Angola dos séculos XVI e XVII e se desenrola durante o início do domínio colonial. Segundo a estória, para a colónia foram enviados os padres e missionários junto com os militares, o rei ficou na Europa. Assim, as figuras na exposição apresentam-se como metáforas do poder militar, eclesiástico e secular, a corte real. A peruca feminina evoca uma senhora da corte, a peruca masculina alude a um juiz. Nessa época, os navios negreiros começaram a estabelecer o comércio transa-
tlântico entre Europa, África e América Latina,
e nestas travessias geoestratégicas entre três continentes estabeleceu-se um império.
A disposição das figuras suspensas sem rosto lembra-nos um jogo de xadrez ou a exposição típica de um museu de antiguidades da época medieval. A orientação das peças coloca-as
“em conversa” umas com as outras, reflectindo a dinâmica geográfica e geopolítica da época, como no romance.
O material escolhido é o cabelo trançado, igual aos penteados africanos, referindo a minha família africana. As penas relacionam-se com
a parte latino-americana da minha família, a minha tia, filha ilegítima do meu avô com uma mulher nativa da Guatemala.
De qualquer ângulo da exposição, um Bakama dos povos N’goyo de Cabinda é visível. Os baka-
mas permitem aos vivos interagir com os seus antepassados e assegurar a reconciliação entre os mortos e os vivos. Nestes vídeos a câmara
fixa observa os movimentos da dançarina, que enverga um traje feito de muitas tiras de tecido sobre as quais se costurou material reflexivo.
As tiras inspiram-se nas “missangas” utilizadas nas tranças finas dos penteados das crianças. Elas rodopiam, gerando um fluxo meditativo
de pontos cintilantes no escuro, uma atmosfera sonhadora que pretende criar uma ligação poética com os antepassados e os reinados
do interior de Angola.
Quando olhamos de perto, nos damos conta que as intrigas, vinganças e violências do romance são universais. O imperialismo, a escravatura e o racismo parecem fazer parte da natureza do homem na sua totalidade.
JC: É leitora assídua de Pepetela? “A Sul.
O Sombreiro” serviu-lhe bem para exteriorizar
o que pretendia mostrar em artes plásticas?
IBC: Sim, sou leitora assídua de Pepetela,
já li quase tudo que ele escreveu. Acho faltam somente uns 5 romances mais antigos. Quando começava a ler em português, tinha mais facili-
dade em compreender os seus livros. Por exem-
plo, para apreciar um romance como “Terra Sonâmbula” de Mia Couto, que é mais poético, levei muitos anos.
Já li o novo romance de Pepetela “Se o Passado não Tivesse Asas”. Como muitos autores, ele dá voz aos que não são ouvidos. Gosto sobretudo dos seus romances históricos, que ajudam imen-
so a alguém de fora como eu a entender melhor a história de Angola. Por exemplo, “Yaka”,
“A Gloriosa Família” ou a “A Sul. O Sombreiro" sobre o tempo colonial, “Mayombe” sobre a guerra de independência e “O Planalto e a Estepe” que reflecte sobre a política internaci-
onal dos anos 60. Da “Geração da Utopia” até ao “Predadores”, ele retratou aguçadamente a sociedade angolana. Também “A Rainha Ginga” de Agualusa foi muito importante.
Mas, antes de saber ler em português já tinha lido muita literatura africana em inglês, e aprendi imenso sobre este continente e sua diáspora através dos escritores nigerianos Ben Okri, Wole Soyinka e Chinua Achebe, e a geração mais nova, Chimamanda Ngozi Adichie, Taiye Selasi e Teju Cole, ou com o grande escritor queniano Ngugi wa Thiong’o. Sem esquecer os sul-africanos J.M. Coetzee e Nadime Gordimer ou a afro-americana Toni Morrison. Há pouco li “Radiance of Tomorrow” de Ishmael Beah que nasceu em Sierra Leone, um país com uma his-
tória igualmente difícil. Não há um único livro destes autores que não toca duma maneira ou doutra os temas que marcaram essencialmente este continente e a sua diáspora. Não é difícil adivinhar, sou viciada em literatura desde criança. Quase todas as minhas obras têm títulos inspirados em livros e, provavelmente,
o meu trabalho também.
As consequências e os traumas deixados
pelo colonialismo nas ainda jovens nações pós-coloniais estão omnipresente através das gera-
ções. Até o nome do meu sogro “Chocolate” é uma invenção do tempo colonial. No Brasil, muitos sobrenomes de famílias de origem afri-
cana são os sobrenomes dos últimos “donos”
dos seus antepassados durante a escravatura.
Não se cinge ao simples acto de ponderar sobre o passado, considerando que a sociedade euro-
peia actual e seu sistema económico não podem ser concebidos sem as suas condicionalidades e crimes coloniais. Abrange também uma análise de onde nos encontramos hoje, uma vez que continuamos a enfrentar a existência de políti-
cas expansionistas e racismo. No jogo de xadrez global a hipocrisia triunfa demasiadamente sobre a humanidade – o meu trabalho tenta criar outra perspectiva desses eventos.
Vejamos, o “Sombreiro” no romance de Pepetela faz referencia a um morro, com forma de cha-
péu largo, que se encontra numa baía larga de mato rasteiro e calmas águas muito longe no Sul. Ao meu ver, o sombreiro representa o desejo de ir para outro lugar (ou situação) longe e dife-
rente daquele(a) em que um dos personagens
do romance se encontra. Representa o desejo
de migrar ou de mudança física ou moral. No contexto do romance, era um lugar onde não haviam brancos e conflitos armados, o que, na minha opinião, quer dizer um futuro diferente.
JC: Como foi o processo de criação do romance
à exposição? Pode a exposição ser entendida também como uma releitura da obra literária em imagens subjectivas? Contudo, aliou a expo-
sição à música e ao teatro através da perfor-
mance, ao modo europeu, de Irina Vasconcelos ("O bobo da corte"). Afinal, há uma lição a ser tirada da cultura colonialista que ainda se impõe?
Talvez um ou outro leitor pode fazer uma relei-
tura através das obras, e espero sim que seja em imagens subjectivas! Mas não era minha ideia ‘ilustrar’ o romance. Os temas sobre os quais reflecti inicialmente tinham muito mais a ver com traumas transgeracionais, com o silêncio dentro das famílias. O facto que o meu marido apenas soube recentemente sobre os seus avós
e a juventude dos seus pais, lembrou-me do silêncio dentro da minha própria família alemã. Absorvi também as experiências dos meus ami-
gos que viveram pouco ou muito tempo na diáspora, muitas as vezes com a família nuclear ausente. Voltaram com diplomas e sotaque português, brasileiro ou como falantes de uma língua europeia, e foram confrontados cá; consi-
derados como não sendo Angolanos por causa do sotaque ou por não falarem uma língua naci-
onal ou por terem hábitos diferentes, o cabelo penteado de forma diferente ou esposa(o) estrangeira(o). Ao mesmo tempo, eles nunca se sentiam realmente parte das sociedades onde viveram, onde passaram o seu tempo a adaptar-se, tornando-se diferentes. O Angolano negro que se sinta em desvantagem, o branco que nas-
ceu com coração negro, o negro que esclarece sua pele, os mulatos ou mestiços claros a justificaram-se para um e outro lado. O racismo, subtil ou aberto, provoca este sofrimento. Ou será o outro, o mesmo?
Reflectindo sobre tudo isso, tive simplesmente
a ideia durante a leitura do “A Sul. O Sombreiro” de voltar à raiz do sofrimento, pegar nos três poderes do tempo colonial para ilustrar o trafico transatlântico, o triângulo Europa – América Latina – África. Casei um Angolano, tenho famí-
lia africana negra, de Cabinda, e tenho uma parte latino-americana na família, através do meu avô e uma. A minha tia tem actualmente
91 anos e vive em Canada, e até hoje ela é con-
frontada pela sua aparência indígena.
O processo da criação era muito lento, levei
dois anos do primeiro desenho até as obras finais, e depois perto de mais um ano para reali-
zar a exposição. Fiz muita pesquisa sobre ma-
teriais e possíveis colaboradores, tudo foi um processo. Facto que qualquer tipo de importação é sempre um esforço e tanto, decidi produzir só as tranças em Luanda e juntar as peças finais em Viena onde encontrei um estúdio especi-
alizado em ‘penas & costura’.
É importante que os visitantes compreendam que o trabalho final é um esforço conjunto, um ‘choro’. Sem a experiência das varias pessoas envolvidas eu nunca teria essas obras. A jovem em Morro Bento que elaborou as tranças, a ta-
lentosa cabeleireira angolana em Camama que criou as penas do capacete, os conselhos do especialista em perucas na Europa, e o estúdio Renato & Co que abraçou o projecto. Sem ajuda de todas essas pessoas eu nunca conseguiria realizar essas obras.
O som da exposição é parte integral da instala-
ção. Já estava a executar as obras quando vi
um vídeo com um actor a imitar vozes de um pássaro. O grito estremeceu-me até aos ossos
e, nesse momento, soube que queria trabalhar com isso para quebrar a beleza das peças. Tornou-se evidente que precisava de som para fazer, de vez em quando, a ligação ao horror.
O Victor Gama encontrei por acaso em Luanda quando esteve cá para o lançamento do docu-
mentário “Trilhos da Independência” da Gera-
ção 80. Amigos meus, arquitectos, já tinham imagens das minhas obras e mostraram a ele. Assim combinamos um jantar. Também por acaso descobri que ele passou os últimos anos
a trabalhar na floresta tropical em Colômbia e
que tem um enorme arquivo de som. Ele gostou tanto do meu projecto que decidimos trabalhar juntos.
Mais tarde, convidei a Irina para fazer a perfor-
mance, simplesmente para ter uma ligação com Angola, ou melhor, uma voz actual de Angola. Foi uma questão de ‘carta branca’ – ela decidiu
o que queria fazer e, na altura, pensei que ela actuaria sozinha, mas decidiu convidar um sa-
xofonista e capoeiristas e trilhar um percurso entre as peças.
As cortes reais dos quatros cantos do mundo conheceram a figura singular do “bobo da corte”. Essa figura interessou-me não como “palhaço”, mas como voz crítica. Muitas vezes, o “bobo da corte” era a pessoa que podia reflectir ou reflectia sobre a situação do povo e dizia ao rei as verdades que ninguém ousava falar. As vezes tinha a posição importante de conselheiro da corte real. Naturalmente, sou alemã, cresci com muitos contos de fada onde essa figura apa-
receu. Fazia parte do meu imaginário. O uso dessa figura não foi uma imposição. Foi um convite para um diálogo com o público.
A arte questiona quem somos, como vivemos, como podemos conviver. As respostas a estas perguntas são sempre uma proposta feita por um indivíduo, que representa um ponto de
vista entre vários.
JC: No texto de apresentação há uma pergunta que nos recorda sermos filhos de vítimas e opressores. Acredita que as artes podem ser um meio e momento de diálogo útil para ultrapas-
sar temas tabus como a escravatura e suas consequências?
IBC: Não tenho certezas. Acredito que as artes conseguem fazer uma proposta de reflexão, falar sobre as feridas que fazem parte da vida humana. Idealmente, podem acompanhar o processo de cura. Cada processo de auto-conhe-
cimento é doloroso. O facto que o meu país não tinha como fugir do seu passado, considerando a crueldade inenarrável, cresci com este credo de ‘nunca mais’. Tive a sorte de ter um avô que vivia na América Latina e só voltou à Alemanha no final da guerra, e outro fazendeiro de escala grande que não foi chamado para a guerra. Mas ambos lados da minha família alemã perderam a sua pátria, a Silésia, que no pós-guerra rever-
teu para a Polónia, e subsequentemente, para a União Soviética. Então, sou neta de duas famí-
lias refugiadas, ou seja, ambos pais cresceram em pobreza absoluta, conhecendo a fome como facto real, vivendo como filhos de refugiados não bem-vindos no seu próprio país. E até hoje não falamos sobre as coisas terríveis que teste-
munharam durante a fuga, que emudeceram o meu pai, por exemplo.
Toda e qualquer situação de violência deixa sequelas, tanto naqueles que cometem como naqueles que sofrem o acto. A história da huma-
nidade tem inúmeros exemplos de situações de extrema violência. Seja o genocídio dos povos nativos latino-americanos, aliás, a única razão porque os Europeus buscaram a mão-de-obra escrava africana, criando assim a escravatura dos povos africanos e a a colonização de facto. Por ser Alemã, as obras reflectem igualmente os dois grandes massacres do século XX cometidos pela Alemanha: o genocídio dos povos Herero e Nama na Namíbia, em 1904–1907; e o holocaus-
to nazi na Europa, durante a 2ª Guerra Mundial, em 1939–1945.
A utilização de cabelo nas obras está ligada à minha curiosidade de descobrir com as minhas cunhadas a arte dos penteados africanos, a escolha de postiços e por aí adiante. Por outro lado, existe a ligação com a minha lembrança duma imagem que vi, enquanto jovem, dos cam-
pos de concentração onde os nazis mataram os judeus em massa. A imagem era de pilhas de objectos descartados. Dentre montes enormes de sapatos, óculos, roupa, dentes de ouro e cabelo, a imagem do monte de cabelo ficou gravada na minha memória, junto com a per-
gunta de como era possível que o país que criou Goethe, Schiller e Kant podia ter chegado a essa barbaridade. Acompanhei a tragédia do século passado em inúmeros livros que individuali-
zaram a dor. Passei da vergonha absoluta de ser alemã até chegar à consciencialização de dedicar a minha vida a esse “nunca mais”.
As obras ‘luvas’ representam, por exemplo,
a brutalidade de um passado, cuja dimensão, compreensão, aceitação e perdão são questões que precisam ser abordadas abertamente. O sofrimento causado por estes actos desumanos continuam a afectar a vida diária dos sobrevi-
ventes e seus descendentes. A este fenómeno os psicólogos chamam ‘trauma transgeracional’.
Em Angola, a colonização e a guerra civil são temas ainda pouco discutidos no seio de muitos famílias. Muitos jovens desconhecem ou pouco sabem sobre as vidas dos seus pais, avós e bisa-
vós durante a época colonial e conflito armado. Reflectir sobre o passado é indispensável para qualquer processo de recuperação e, sobretudo, para pensar no futuro.
JC: Sendo uma europeia a residir em Luanda, acha que Luanda já aborda esse assunto com naturalidade? Em contrapartida, acredita que
a actual geração europeia tem consciência das sequelas deste processo e debate-o com natu-
ralidade e liberdade de conceitos?
IBC: Ser estrangeira sempre traz a vantagem
de ter um olhar “exterior”. De certo que sou imi-
grante, uma ‘imigrante de amor’. Apaixonei-me por este país e pelo seu povo anos antes de co-
nhecer o meu marido. Quando respirei pela pri-
meira vez o ar tropical no Aeroporto de Luanda em 2003, já sabia que haveria uma estória espe-
cial entre mim e esta terra. A sociedade, amigos e a minha família angolana receberam-me de braços abertos, e quanto mais mergulhava dentro das suas estórias diversas mais visível era o sofrimento, sabendo eu que o passado pode se tornar presentâneo até num homem que nasceu após o fim da visibilidade dos eventos destrutivos.
Ainda pouco se estudou sobre o efeito da colo-
nização sobre os povos colonizados. Sabemos que a escravatura, o colonialismo, os genocídios, as guerras e as pressões económicas resultaram na quebra, dispersão e distanciamento dos laços familiares, comunitários e culturais de milhões de pessoas em todo o mundo, criando as diáspo-
ras. Os refugiados, emigrantes, imigrantes, exi-
lados, expatriados e repatriados são exemplos actuais desses movimentos populacionais voluntários e forçados.
Acho ninguém aborda assuntos tão pesados
com naturalidade, em Alemanha demorou quase uma geração antes dos jovens começarem a protestar e pedir justificações à geração dos seus pais e avós. E cá? Qualquer pessoa acima dos 43 anos tem lembranças vivas e, com certe-
za, pesadas do tempo colonial, poderão ter assis-
tido cenas humilhantes. Não é fácil perguntar a um familiar seu se tinha ou não consciência de que não era livre, se era assimilado ou não, se tinha acesso à educação ou não.
Olhemos para os Estados Unidos: quando vejo
o noticiário hoje em dia, tenho a impressão
que nada mudou desde que Martin Luther King disse: “Once I had a dream …”. A maioria da comunidade afro-americana, a diáspora afri-
cana, está muito longe da realidade desse sonho. Um bom debate sobre esse tema figura-se cada vez mais necessário.
A actual geração europeia, apesar de toda a formação académica que recebe, sabe muito pouco sobre o continente africano e sua histó-
ria. Falo da minha própria experiência. Eu já fui uma ignorante absoluta, nem sabia onde ficava Angola no mapa antes de começar a colaborar no projecto Camouflage com Fernando Alvim muitos anos atrás. Na escola aprendi algo sobre como o continente foi dividido numa mesa em Berlim e sobre as guerras coloniais. O resto já era só geografia. O impacto e as consequências sobre as populações? Zero. Literatura africana? Zero. Sabia que a imagem que tinha era errada; das crianças famintas, das guerras civis... até hoje os media europeus gostam de pintar a imagem dum “inferno negro”. Contudo, antes ter contacto com intelectuais africanos não tinha como a rectificar essa imagem. O primeiro negro que vi na minha vida era um GI america-
no destacado numa base militar no sul da Alemanha. Já estava quase a terminar os estu-
dos secundários quando a primeira aluna afri-
cana entrou na minha escola, uma refugiada
da Eritreia que frequentou a classe da minha
irmã mais nova.
Talvez agora, com as ondas de migrantes que atravessam o mar mediterrâneo todos os dias,
se vai criando alguma consciência em Europa porque, obviamente, muitos dos problemas
que o continente africano enfrenta são criados pelo próprio Norte. Há dezenas de anos que a ajuda para o desenvolvimento não leva os países beneficiários a lado nenhum, tornando-os presos à armadilha das dívidas, o mecanismo perfeito para dominar um país. Em vez de desenvolverem economias sustentáveis que criam emprego, que alimentam a população sem serem dependentes de importações, de ajudarem a desenvolver universidades dignas do nome que compitam com as melhores do mundo. Ao final, todo o mundo beneficiará se este continente continuar a crescer economica-
mente. E como nós cá já constatamos, muitas economias crescem e continuarão a crescer a uma velocidade promissora. Digo que África
é o futuro.
JC: As cores dos tecidos têm alguma simbologia ligada ao tema, ou seja, o manto imperial em verde?
IBC: O verde do tecido e o esquema de cores das penas das obras baseia-se na famosa coroa de ‘Montezuma II’, soberano no auge da expansão do Império Asteca (actual México), há cerca de 500 anos, época em que ocorreram o primeiros contactos entre os povos da América Central e
os europeus. Esta coroa esta feita inteiramente com penas do raro e mítico pássaro quetzal, pássaro este que o meu avô, emigrante na Gua-
temala no século passado, mencionou várias vezes nas suas memórias. Foi assim que me decidi sobre a cor. O facto de que as únicas pe-
nas verdadeiras criadas com preço acessível são as do pavão (os pavões não são mortos pelas suas penas. Elas são, na verdade, longas exten-
sões das penas da cauda que caem naturalmente todos os anos, logo após a época de acasalamen-
to, voltando a crescer no ano seguinte) levou-me à decisão de trabalhar com elas. Gostei também da ideia dos ‘olhos’ das penas, quase testemunhos mudos do horror.
Voltando à coroa de Montezuma II, a original está exposta no Museu do Mundo em Viena, Áustria onde vivi entre 1998/99. Até hoje o governo mexicano pede em vão a devolução deste objecto, que tem um enorme valor cultu-
ral para o México. Todos os países colonizados conhecem este tipo de situações e precisam lidar com o acesso limitado à sua herança cultural. Foi deste modo que tentei ligar um passado de roubo de bens culturais com um presente que a Áustria se recusa a devolver a coroa. Esta coroa é uma obra-prima de artesa-
nato pré-colonial. Demostra a criatividade ancestral própria destes povos antigos. A sobre-
vivência da herança artesanal dos povos de-
pende da sua valorização e transmissão para as novas gerações como, por exemplo, a arte
das tranças.
No manto imperial em si, impressionante pela sua dimensão, escolhi, em vez dum símbolo de poder, realçá-lo com um desenho Sona que con-
ta um mito sobre a nossa mortalidade. O manto inclui outros desenhos que se referem ao paisa-
gismo europeu dos séculos passados.
JC: Pudemos perceber que há peças que evocam os poderes coloniais eclesiástico e militar. Em geral, acredita que a arte acompanhou de forma fidedigna as transformações/transportações das atitudes substanciais destas instituições desde a escravatura aos nossos dias?
IBC: Geralmente, a arte reflectiu em cada época o seu tempo, como uma metáfora há sempre várias maneiras de leitura. Minha opinião pes-
soal é que também a Igreja Católica devia fazer um esforço para enfrentar a parte obscura da sua história e acumulação da sua riqueza. Não tem como negar historicamente que a Igreja fez parte dos crimes da colonização, até justificou-os, ao declarar que só os que eram batizados eram humanos. Quando olhamos para a Europa nos dias de hoje, e não só na Alemanha, um escândalo atrás do outro mostra o abuso sexual de menores, agora adultos, cometido por padres pedófilos que depois são protegidos pela própria Igreja. Por cima disso, não faz sentido esconder o problema da pedofilia, algo que a Igreja co-
nhece há muito tempo, que arruinou e arruína
a vida das vítimas sem voz, que permanecem traumatizadas para sempre. Não sei, talvez agora, no século XXI, é tempo de deixar os padres casarem-se...
O poder militar faz parte de cada democracia, não sei se existem “guerras justas”, mas per-
gunto-me porquê que o mundo nada fez quando começou o grande genocídio em Ruanda. O mundo teve conhecimento, mas, pois, o que importa um pequeno país no centro de África? Aliado ao facto que este genocídio era uma consequência directa da colonização, os coloni-
zadores utilizaram os Tutsi para dominar os Hutus, opondo estas duas tribos uma a outra. Finda a colonização, esta situação perpetuou-se e, por fim, descontrolou-se. O ódio e a humi-
lhação acumulados por séculos canalizaram-se num massacre que demorou 100 dias e matou quase um milhão de pessoas, tanto Tutsis como Hutus. É quase certo que o mundo ou as grandes potências militares teriam intercedido se Ruanda tivesse recursos naturais estratégicos. Por esta razão julgo que a guerra em Angola durou tanto tempo e, ao meu ver, explica o actual estado do Médio Oriente.
Infelizmente, pouco mudou desde o tempo colonial, o poder militar das diversas nações é frequentemente usado para assegurar vanta-
gens económicas. No século passado, golpes de estados criados pelos Estados Unidos eram quase “normais”, sempre ligados aos interesses económicos. Um bom exemplo disso é o país onde o meu avô viveu 22 anos, a Guatemala. Nos anos 50, o presidente Jacobo Árbenz Guzmán tomou várias medidas para desenvolver seu país que eram contra os interesses dos Estados Uni-
dos, sobretudo a reforma agrária que oporia o interesse da “United Fruit Company”. Assim, os americanos inventaram um golpe de estado e da história das ditaduras sangrentas que se seguir-
am ninguém quer saber. Onde estaria a Guate-
mala hoje se Guzmán tivesse a chance de conti-
nuar o seu trabalho? Onde estaria o Congo hoje se a Bélgica e os Estados Unidos não tivessem ajudado a eliminar Patrice Lumumba? Onde estaria o próprio Irão sem o golpe de estado iniciado pela companhia British Petroleum, que não gostou que o primeiro primeiro-ministro democraticamente eleito, Mohammed Mossadeq, pretendesse nacionalizar os recursos petrolíferos? Em suma, preparou-se o caminhou para os extremistas e a destabilização de uma inteira região. Como Gandhi disse: “History teaches men, that history teaches men nothing.”
JC: Que temáticas, filosofia e objectivos fundamentam o programa "A Pele do Invisível", atrelado à exposição?
IBC: Estou muito feliz com o resultado do programa educativo da exposição ‘A Pele do Invisível’ que foi elaborado em colaboração com o ‘vamos ler!’ uma iniciativa educativa privada. E quero sublinhar o trabalho extraordinário de Tila Likunzi, que desenvolveu todos os textos. Tivemos muitas discussões interessantes sobre como abordar e organizar a complexidade dos temas. Juntamos meu olhar “exterior” com os olhares “interiores” de Tila e do André Cunha,
o curador.
O programa todo gira em volta da “Identidade Cultural” ou da questão “porque somos ou que somos”. Para facilitar este trabalho, dividimos os temas em três tempos: Passado, Presente e Futuro. O foco do programa educativo é sempre a perspectivação do futuro.
Por exemplo, agrupamos os ‘Bakamas’ e a ‘Coroa Montezuma’ (que inspirou o esquema de cor das penas) no Passado, propondo exercícios como escrever uma “carta ao bisavô” que tem por ob-
jectivo a consciencialização sobre a herança e identidade cultural. Outra proposta de exercício é “criar uma coroa”, cuja finalidade é a consci-
encialização sobre o artesanato e herança artesanal.
No Presente, agrupamos ‘O Som’, ‘As Luvas’,
‘A Fé’ e os ‘Jogos de Palavras’. Existem exer-
cícios diversos como ‘sentir o som’ cujo objec-
tivo é associar os sons aos sentimentos. Outro exercício, “Mensagem na Garrafa”, ajuda a pensar em situações que não gostaríamos que voltassem a acontecer no futuro. O objectivo
é imaginar um futuro diferente. Já os temas difíceis como a migração e o trauma, abordamos com a ‘Mala de memória’, um exercício em que os jovens fazem uma lista de coisas que já per-
deram abordando automaticamente a saudade. O objectivo é conhecer o próximo, o outro, o mesmo. Para ‘A Fé’ fizemos uma proposta para um Jogo de Palavras: “Antónimos & Sinónimos” com palavras-chaves como empatia, compaixão, compreensão, tolerância, perdão/intolerância, indiferença, medo, ignorância e malevolência.
O objectivo é compreender o que leva à união
ou divisão entre as pessoas.
No Futuro colocamos ‘O Sombreiro’, voltando
à rica temática do romance, com o exercício “Capsula do Tempo”, em que os jovens são esti-
mulados a desenhar ou escrever um desejo, sonho ou ideia para o futuro. O objectivo é pensar em possibilidades futuras.
Em suma, todos os exercícios consciencializam sobre a variedade de temas de debate, e lem-
bram aos jovens que discordar é normal. Cada um terá o seu ponto de vista e cada grupo concordará talvez sobre algo diferente.
O programa educativo realizará vários work-
shops sobre os temas. Incluirá também a dispo-
nibilização de material educativo sobre a expo-
sição a mediadores e professores para a sua posterior discussão noutras arenas. Vai ter igualmente um workshop sobre mediação cultural onde participaram funcionários de vários museus localizados em Luanda.
Por últimos, renovo os meus profundos agra-
decimentos aos patrocinadores da exposição, especialmente ao patrocinador principal o banco Caixa Angola, e particularmente à empresa Internet Technologies Angola (ITA), que patrocinou o programa educativo. De destacar o imenso apoio dado pela ENSA, Seguros de Angola, o Goethe-Institut Angola
e o Memorial Dr. António Agostinho Neto.
JC: Muito obrigada.
—
Iris Buchholz Chocolate nasceu na Alemanha. Vive e trabalha em Luanda, que conhece desde 2003. Licenciada em design de comunicação, coordenou com Fernando Alvim, de 1999 a 2005, Camouflage Bruxelas, satélite europeu do centro de arte contemporânea africana. Participou na I e II Trienal de Luanda como artista e consultora. Já expôs, entre outros, na Ásia, no Museu Nacio-
nal da Singapura, e no Jewish Museum New York, nos Estados Unidos, onde representou Angola, em 2016 na exposição “Highlights: Sights and Sounds of Global Video.”
Publicado: Cultura – Jornal Angolano de Artes
e Letras, Nº 121, 7 de Novembro de 2016