Iris Chocolate recria “A Sul. O Sombreiro”
O imperialismo, a escravatura e o racismo como parte do homem na sua totalidade

Entrevista por Matadi Makola
 
JC: Sendo uma europeia a residir em Luanda, acha que Luanda já aborda esse assunto com naturalidade? Em contrapartida, acredita que
a actual geração europeia tem consciência das sequelas deste processo e debate-o com natu-
ralidade e liberdade de conceitos?


IBC: Ser estrangeira sempre traz a vantagem
de ter um olhar “exterior”. De certo que sou imi-
grante, uma ‘imigrante de amor’. Apaixonei-me por este país e pelo seu povo anos antes de co-
nhecer o meu marido. Quando respirei pela pri-
meira vez o ar tropical no Aeroporto de Luanda em 2003, já sabia que haveria uma estória espe-
cial entre mim e esta terra. A sociedade, amigos e a minha família angolana receberam-me de braços abertos, e quanto mais mergulhava dentro das suas estórias diversas mais visível era o sofrimento, sabendo eu que o passado pode se tornar presentâneo até num homem que nasceu após o fim da visibilidade dos eventos destrutivos.

Ainda pouco se estudou sobre o efeito da colo-
nização sobre os povos colonizados. Sabemos que a escravatura, o colonialismo, os genocídios, as guerras e as pressões económicas resultaram na quebra, dispersão e distanciamento dos laços familiares, comunitários e culturais de milhões de pessoas em todo o mundo, criando as diáspo-
ras. Os refugiados, emigrantes, imigrantes, exi-
lados, expatriados e repatriados são exemplos actuais desses movimentos populacionais voluntários e forçados.

Acho ninguém aborda assuntos tão pesados
com naturalidade, em Alemanha demorou quase uma geração antes dos jovens começarem a protestar e pedir justificações à geração dos seus pais e avós. E cá? Qualquer pessoa acima dos 43 anos tem lembranças vivas e, com certe-
za, pesadas do tempo colonial, poderão ter assis-
tido cenas humilhantes. Não é fácil perguntar a um familiar seu se tinha ou não consciência de que não era livre, se era assimilado ou não, se tinha acesso à educação ou não.

Olhemos para os Estados Unidos: quando vejo
o noticiário hoje em dia, tenho a impressão
que nada mudou desde que Martin Luther King disse: “Once I had a dream …”. A maioria da comunidade afro-americana, a diáspora afri-
cana, está muito longe da realidade desse sonho. Um bom debate sobre esse tema figura-se cada vez mais necessário.

A actual geração europeia, apesar de toda a formação académica que recebe, sabe muito pouco sobre o continente africano e sua histó-
ria. Falo da minha própria experiência. Eu já fui uma ignorante absoluta, nem sabia onde ficava Angola no mapa antes de começar a colaborar no projecto Camouflage com Fernando Alvim muitos anos atrás. Na escola aprendi algo sobre como o continente foi dividido numa mesa em Berlim e sobre as guerras coloniais. O resto já era só geografia. O impacto e as consequências sobre as populações? Zero. Literatura africana? Zero. Sabia que a imagem que tinha era errada; das crianças famintas, das guerras civis... até hoje os media europeus gostam de pintar a imagem dum “inferno negro”. Contudo, antes ter contacto com intelectuais africanos não tinha como a rectificar essa imagem. O primeiro negro que vi na minha vida era um GI america-
no destacado numa base militar no sul da Alemanha. Já estava quase a terminar os estu-
dos secundários quando a primeira aluna afri-
cana entrou na minha escola, uma refugiada
da Eritreia que frequentou a classe da minha
irmã mais nova.

Talvez agora, com as ondas de migrantes que atravessam o mar mediterrâneo todos os dias,
se vai criando alguma consciência em Europa porque, obviamente, muitos dos problemas
que o continente africano enfrenta são criados pelo próprio Norte. Há dezenas de anos que a ajuda para o desenvolvimento não leva os países beneficiários a lado nenhum, tornando-os presos à armadilha das dívidas, o mecanismo perfeito para dominar um país. Em vez de desenvolverem economias sustentáveis que criam emprego, que alimentam a população sem serem dependentes de importações, de ajudarem a desenvolver universidades dignas do nome que compitam com as melhores do mundo. Ao final, todo o mundo beneficiará se este continente continuar a crescer economica-
mente. E como nós cá já constatamos, muitas economias crescem e continuarão a crescer a uma velocidade promissora. Digo que África
é o futuro.


JC: As cores dos tecidos têm alguma simbologia ligada ao tema, ou seja, o manto imperial em verde?

IBC: O verde do tecido e o esquema de cores das penas das obras baseia-se na famosa coroa de ‘Montezuma II’, soberano no auge da expansão do Império Asteca (actual México), há cerca de 500 anos, época em que ocorreram o primeiros contactos entre os povos da América Central e
os europeus. Esta coroa esta feita inteiramente com penas do raro e mítico pássaro quetzal, pássaro este que o meu avô, emigrante na Gua-
temala no século passado, mencionou várias vezes nas suas memórias. Foi assim que me decidi sobre a cor. O facto de que as únicas pe-
nas verdadeiras criadas com preço acessível são as do pavão (os pavões não são mortos pelas suas penas. Elas são, na verdade, longas exten-
sões das penas da cauda que caem naturalmente todos os anos, logo após a época de acasalamen-
to, voltando a crescer no ano seguinte) levou-me à decisão de trabalhar com elas. Gostei também da ideia dos ‘olhos’ das penas, quase testemunhos mudos do horror.

Voltando à coroa de Montezuma II, a original está exposta no Museu do Mundo em Viena, Áustria onde vivi entre 1998/99. Até hoje o governo mexicano pede em vão a devolução deste objecto, que tem um enorme valor cultu-
ral para o México. Todos os países colonizados conhecem este tipo de situações e precisam lidar com o acesso limitado à sua herança cultural. Foi deste modo que tentei ligar um passado de roubo de bens culturais com um presente que a Áustria se recusa a devolver a coroa. Esta coroa é uma obra-prima de artesa-
nato pré-colonial. Demostra a criatividade ancestral própria destes povos antigos. A sobre-
vivência da herança artesanal dos povos de-
pende da sua valorização e transmissão para as novas gerações como, por exemplo, a arte
das tranças.

No manto imperial em si, impressionante pela sua dimensão, escolhi, em vez dum símbolo de poder, realçá-lo com um desenho Sona que con-
ta um mito sobre a nossa mortalidade. O manto inclui outros desenhos que se referem ao paisa-
gismo europeu dos séculos passados.


JC: Pudemos perceber que há peças que evocam os poderes coloniais eclesiástico e militar. Em geral, acredita que a arte acompanhou de forma fidedigna as transformações/transportações das atitudes substanciais destas instituições desde a escravatura aos nossos dias?

IBC: Geralmente, a arte reflectiu em cada época o seu tempo, como uma metáfora há sempre várias maneiras de leitura. Minha opinião pes-
soal é que também a Igreja Católica devia fazer um esforço para enfrentar a parte obscura da sua história e acumulação da sua riqueza. Não tem como negar historicamente que a Igreja fez parte dos crimes da colonização, até justificou-os, ao declarar que só os que eram batizados eram humanos. Quando olhamos para a Europa nos dias de hoje, e não só na Alemanha, um escândalo atrás do outro mostra o abuso sexual de menores, agora adultos, cometido por padres pedófilos que depois são protegidos pela própria Igreja. Por cima disso, não faz sentido esconder o problema da pedofilia, algo que a Igreja co-
nhece há muito tempo, que arruinou e arruína
a vida das vítimas sem voz, que permanecem traumatizadas para sempre. Não sei, talvez agora, no século XXI, é tempo de deixar os padres casarem-se...

O poder militar faz parte de cada democracia, não sei se existem “guerras justas”, mas per-
gunto-me porquê que o mundo nada fez quando começou o grande genocídio em Ruanda. O mundo teve conhecimento, mas, pois, o que importa um pequeno país no centro de África? Aliado ao facto que este genocídio era uma consequência directa da colonização, os coloni-
zadores utilizaram os Tutsi para dominar os Hutus, opondo estas duas tribos uma a outra. Finda a colonização, esta situação perpetuou-se e, por fim, descontrolou-se. O ódio e a humi-
lhação acumulados por séculos canalizaram-se num massacre que demorou 100 dias e matou quase um milhão de pessoas, tanto Tutsis como Hutus. É quase certo que o mundo ou as grandes potências militares teriam intercedido se Ruanda tivesse recursos naturais estratégicos. Por esta razão julgo que a guerra em Angola durou tanto tempo e, ao meu ver, explica o actual estado do Médio Oriente.

Infelizmente, pouco mudou desde o tempo colonial, o poder militar das diversas nações é frequentemente usado para assegurar vanta-
gens económicas. No século passado, golpes de estados criados pelos Estados Unidos eram quase “normais”, sempre ligados aos interesses económicos. Um bom exemplo disso é o país onde o meu avô viveu 22 anos, a Guatemala. Nos anos 50, o presidente Jacobo Árbenz Guzmán tomou várias medidas para desenvolver seu país que eram contra os interesses dos Estados Uni-
dos, sobretudo a reforma agrária que oporia o interesse da “United Fruit Company”. Assim, os americanos inventaram um golpe de estado e da história das ditaduras sangrentas que se seguir-
am ninguém quer saber. Onde estaria a Guate-
mala hoje se Guzmán tivesse a chance de conti-
nuar o seu trabalho? Onde estaria o Congo hoje se a Bélgica e os Estados Unidos não tivessem ajudado a eliminar Patrice Lumumba? Onde estaria o próprio Irão sem o golpe de estado iniciado pela companhia British Petroleum, que não gostou que o primeiro primeiro-ministro democraticamente eleito, Mohammed Mossadeq, pretendesse nacionalizar os recursos petrolíferos? Em suma, preparou-se o caminhou para os extremistas e a destabilização de uma inteira região. Como Gandhi disse: “History teaches men, that history teaches men nothing.”


JC: Que temáticas, filosofia e objectivos fundamentam o programa "A Pele do Invisível", atrelado à exposição?

IBC: Estou muito feliz com o resultado do programa educativo da exposição ‘A Pele do Invisível’ que foi elaborado em colaboração com o ‘vamos ler!’ uma iniciativa educativa privada. E quero sublinhar o trabalho extraordinário de Tila Likunzi, que desenvolveu todos os textos. Tivemos muitas discussões interessantes sobre como abordar e organizar a complexidade dos temas. Juntamos meu olhar “exterior” com os olhares “interiores” de Tila e do André Cunha,
o curador.

O programa todo gira em volta da “Identidade Cultural” ou da questão “porque somos ou que somos”. Para facilitar este trabalho, dividimos os temas em três tempos: Passado, Presente e Futuro. O foco do programa educativo é sempre a perspectivação do futuro.

Por exemplo, agrupamos os ‘Bakamas’ e a ‘Coroa Montezuma’ (que inspirou o esquema de cor das penas) no Passado, propondo exercícios como escrever uma “carta ao bisavô” que tem por ob-
jectivo a consciencialização sobre a herança e identidade cultural. Outra proposta de exercício é “criar uma coroa”, cuja finalidade é a consci-
encialização sobre o artesanato e herança artesanal.

No Presente, agrupamos ‘O Som’, ‘As Luvas’,
‘A Fé’ e os ‘Jogos de Palavras’. Existem exer-
cícios diversos como ‘sentir o som’ cujo objec-
tivo é associar os sons aos sentimentos. Outro exercício, “Mensagem na Garrafa”, ajuda a pensar em situações que não gostaríamos que voltassem a acontecer no futuro. O objectivo
é imaginar um futuro diferente. Já os temas difíceis como a migração e o trauma, abordamos com a ‘Mala de memória’, um exercício em que os jovens fazem uma lista de coisas que já per-
deram abordando automaticamente a saudade. O objectivo é conhecer o próximo, o outro, o mesmo. Para ‘A Fé’ fizemos uma proposta para um Jogo de Palavras: “Antónimos & Sinónimos” com palavras-chaves como empatia, compaixão, compreensão, tolerância, perdão/intolerância, indiferença, medo, ignorância e malevolência.
O objectivo é compreender o que leva à união
ou divisão entre as pessoas.

No Futuro colocamos ‘O Sombreiro’, voltando
à rica temática do romance, com o exercício “Capsula do Tempo”, em que os jovens são esti-
mulados a desenhar ou escrever um desejo, sonho ou ideia para o futuro. O objectivo é pensar em possibilidades futuras.

Em suma, todos os exercícios consciencializam sobre a variedade de temas de debate, e lem-
bram aos jovens que discordar é normal. Cada um terá o seu ponto de vista e cada grupo concordará talvez sobre algo diferente.

O programa educativo realizará vários work-
shops sobre os temas. Incluirá também a dispo-
nibilização de material educativo sobre a expo-
sição a mediadores e professores para a sua posterior discussão noutras arenas. Vai ter igualmente um workshop sobre mediação cultural onde participaram funcionários de vários museus localizados em Luanda.

Por últimos, renovo os meus profundos agra-
decimentos aos patrocinadores da exposição, especialmente ao patrocinador principal o banco Caixa Angola, e particularmente à empresa Internet Technologies Angola (ITA), que patrocinou o programa educativo. De destacar o imenso apoio dado pela ENSA, Seguros de Angola, o Goethe-Institut Angola
e o Memorial Dr. António Agostinho Neto.

JC: Muito obrigada.


Iris Buchholz Chocolate nasceu na Alemanha. Vive e trabalha em Luanda, que conhece desde 2003. Licenciada em design de comunicação, coordenou com Fernando Alvim, de 1999 a 2005, Camouflage Bruxelas, satélite europeu do centro de arte contemporânea africana. Participou na I e II Trienal de Luanda como artista e consultora. Já expôs, entre outros, na Ásia, no Museu Nacio-
nal da Singapura, e no Jewish Museum New York, nos Estados Unidos, onde representou Angola, em 2016 na exposição “Highlights: Sights and Sounds of Global Video.”


Publicado: Cultura – Jornal Angolano de Artes
e Letras, Nº 121, 7 de Novembro de 2016